Sem dúvida alguma, a criatividade é como um músculo: quanto mais a gente usa, mais forte ela fica. Eu gosto de pensar que ela é como uma fogueira, que para se manter acesa precisa ser alimentada com frequência.
E o melhor é que quanto mais oferecemos nossa criatividade ao mundo, mais ela se acende.
Escrever é, antes de tudo, manter-se em movimento. Às vezes, a escrita flui como um rio; outras, é só um filete de água tentando romper a pedra. E, quandoas ideias parecem não querer aparecer, não é motivo para desistir. Pelo contrário: é sinal de que está na hora de alimentar o fogo criativo com outras fagulhas.
Criar também é cultivar, e isso passa por estar aberto ao mundo. Às vezes, a gente se cobra tanto para produzir algo relevante que esquece que o exercício de escrever sem compromisso é, por si só, a principal forma de manter a imaginação viva.
Se a escrita não vem, escreva mesmo assim.
Escreva um bilhete
um delírio
uma descrição boba de um copo sobre a mesa.
Escreva para encontrar o que escrever.
E, se for preciso fazer uma pausa, que ela seja uma pausa ativa. Há muitas formas de alimentar a criatividade, e aqui vão algumas que têm me ajudado:
✧ Coisas que alimentam a criatividade:
Caminhar pela rua como quem visita uma galeria de arte, porque toda rua é uma exposição a céu aberto. Cada esquina revela uma obra inédita, seja um grafite, um lambe-lambe, cartazes sobrepostos que formam colagens, vitrines improvisadas, placas com mensagens curiosas. Até os calçados coloridos das pessoas se cruzando viram movimento coreografado. Às vezes, tudo que a gente precisa para alimentar a criatividade é sair de casa com olhos curiosos.
Manusear livros em sebos ou bibliotecas, abrir ao acaso e deixar uma frase te atravessar. Há algo de mágico em tocar livros que já passaram por outras mãos. Nos sebos e nas bibliotecas, a experiência vai além da leitura, é também farejar histórias e seguir os rastros deixados por quem leu antes. Se o livro tiver dedicatória ou um trecho marcado, ô sorte!
Ouvir música, e se deixar contagiar pelo ritmo. Há dias em que a criatividade não vem pelo papel, mas pelo ouvido. É no movimento e na despreocupação que muitas ideias aparecem (aproveite para dançar um forrózinho, sozinho na cozinha). Quando a mente se solta, a escrita agradece.
Fazer listas: de ideias, de lembranças, de compras, de objetos, de perguntas, de respostas;
Fazer nada por uns minutos e deixar os pensamentos embaralharem sem cobrança. Os italianos têm uma expressão linda: dolce far niente, a doçura de não fazer nada. Parece simples, mas exige coragem num mundo que cobra produtividade o tempo todo. Às vezes, uma boa ideia vem justamente quando não estamos procurando por ela.
Assistir filmes, séries ou documentários sobre pessoas que escrevem porque não há nada mais inspirador do que conhecer o processo criativo de alguém que cria. Filmes, séries e documentários sobre pessoas que escrevem nos lembram que a escrita não nasce pronta, mas que ela é construída, uma palavra por vez, entre dúvidas, memórias e experiências. Essas são minhas escolhas preferidas:
Shirley — uma escritora provocadora entre o gênio e a desordem;
Frida — não é sobre literatura, mas é sobre criar com o corpo inteiro;
Nunca te vi, sempre te amei — a beleza da correspondência entre escritores, traz a citação preferida da minha vida (será que você descobre qual é?)
Valéria — série leve e divertida sobre mulheres, escrita, amizade e reinvenção;
Alessandra — série documental sobre Alessandra Pizarnik;
Joan Didion: The Center Will Not Hold;
Noites Selvagens com Emily —um olhar sobre a vida de Emily Dickinson muito diferente das representações típicas;
Cora Coralina: Todas as Vidas — o retrato de uma mulher que virou palavra;
Marina Colasanti no SESC 24de Maio;
Mary Shelley — juventude, dor e invenção da criadora de Frankenstein;
Manoel de Barros: Só dez por cento é mentira — sobre poesia, natureza e encantamento;
Sobre Susan Sontag — lucidez, política, escrita e contradição.
A criatividade é generosa. Às vezes, ela só precisa de um pouco de espaço, de pausa, de escuta. E quando a gente volta pra página, já não volta só. Trazemos o mundo junto com a gente.
Pra continuar escrevendo
(um exercício de criatividade sem pressa)
Escolha uma frase que você mesma tenha escrito — pode ser de um conto, um poema, um diário, uma conversa que ficou na memória. Uma frase que você goste, que te diga algo.
Agora, respire fundo e experimente ilustrá-la.
Não, não é preciso "saber desenhar". A proposta não é fazer arte para galeria, é brincar com formas de traduzir o que a frase carrega. Pode ser com colagens, recortes de revistas, tecido, lantejoulas, uma folha que o vento trouxe até você, aquarela, canetinha, lápis de cor, o que tiver por perto.
O gesto de ilustrar ativa outro modo de pensar, mais sensorial, mais livre. E às vezes, ao desenhar uma frase, a gente descobre novas palavras.
Quer ir além? Experimente criar um lambe-lambe ou um fanzine com essas ilustrações e frases. Recorte, cole, dobre, escreva, reproduza. Deixe que sua frase ganhe vida nas paredes da sua casa, no presente que você dá a alguém ou na página que se multiplica em muitas outras.
Por(entre)linhas desta semana fica por aqui, eu espero que essas palavras tenham acendido uma faísca de inspiração para você. Que a criatividade se manifeste em gestos pequenos, livres e cheios de sentido.
Até a próxima, com mais encontros entre as linhas.
Eu amei as dicas e me identifiquei com algumas. Estava viajando semana passada e fiz exatamente (por coincidencia) o que você recomendou na primeira dica e... foi incrível! Eu sentia que estava olhando para o bairro no qual estava com outros olhos, a interação das pessoas nas ruas me chamava atenção, transbordou tanto que comecei a gravar audio pra mim mesma hahaha obrigada pela generosidade dessas dicas 💜
A caminhada pra resolver impasses criativos funciona mesmo.
Às vezes, é o corpo que precisa se mover pra cabeça destravar.
Já me peguei saindo pra andar só pra ver se alguma ideia se desenrola — e, no meio do caminho, ela vem.
Às vezes numa vitrine, num grafite, num diálogo entre desconhecidos.
O mundo devolve quando a gente sai pra escutar com o corpo inteiro.
Esse texto me lembrou disso com sensibilidade e leveza.
Criar é estar em movimento, mesmo quando a página ainda parece parada. Obrigado por compartilhar, Mabelly.