#22 Escrever sobre e nas entrelinhas da vida
Porque escrever também é reaprender, uma linha por vez.
Na quinta-feira, acabou o pó de café.
Fiquei olhando para o pote vazio com uma pontinha de desespero, dessas que parecem maiores do que realmente são porque vêm antes mesmo da gente tirar a remela dos olhos. Quem seria eu antes das 6 sem meu livro de cafeína?
Por sorte, lembrei do chá preto no armário. Estava guardado há meses, desde o dia em que tomei uma xícara maravilhosa num restaurante tailandês e, empolgada, achei que conseguiria repetir a experiência em casa. Não consegui. Mas ali estava ele, pronto para me resgatar quando o café falhou.
Peguei a garrafa térmica e, sem pensar muito, fiz o que minha mãe sempre fazia: passei água quente nela antes de colocar o chá.
E sorri. Porque por muitos anos achei esse gesto uma bobagem.
A falta de pó de café me fez entender que há pequenas coisas que a gente aprende no silêncio da observação e só percebe o valor muito depois, quando está lá, sozinha, tentando fazer a vida funcionar sem tropeçar nos vazios.
São os gestos miúdos que, no fundo, mantém a vida de pé.
Mas nem sempre fui paciente com repetições, nem com aquilo que parecia falho ou imperfeito à primeira vista.
Talvez por cansaço, talvez por teimosia, me tornei uma pessoa desacreditada nas segundas chances. Tenho essa mania de achar que o que não deu certo uma vez, não vai dar nunca mais, que não adianta insistir em algo que já se quebrou, que já decepcionou, já não brilhou. Sempre fui de passar adiante, de jogar fora, fechar a porta sem muito barulho, mas com uma certa rigidez, como quem tenta proteger o coração da repetição do erro.
Só que, parece que junho veio para quebrar meus estereótipos.
Fui surpreendida por uma propaganda da nova temporada de And Just Like That. Dei play. Antes de me julgar entenda que me construi mulher adulta no início dos anos 2000 e Carrie Bradshaw era uma bússola.
Logo no início do primeiro episódio percebi que já havia começado a assistir a primeira temporada daquela série, e que, na época, não havia gostado nenhum pouquinho. Mas, vá lá, decidi dar mais uma chance.
Parece que em, quatro anos, algo mudou. Não na série, mas em mim. Ela me pegou de outro jeito. Agora eu também sou outra: com mais rugas, mais tolerância, menos certezas. Vi personagens tentando se desconstruir, e dessa vez, percebi algo bonito.
Vi também a mim mesma, desconstruindo a ideia de que tudo tem que ser bom logo de cara, que só vale o que é certeiro, que segunda chance é perda de tempo.
Às vezes, é na repetição (quem dirá nos tropeços) que a gente vai afinando o tom, se tornando outra sem grandes alardes, numa sutileza praticamente imperceptível. Nas entrelinhas, mesmo, onde a gente hesita, repete o gesto da mãe, mesmo sem pensar muito. Onde muda a forma de pensar, não porque estava errada, mas porque agora é outra.
Talvez viver seja sobre isso: menos sobre o que se planeja e mais sobre o que se reconstrói.
Reaprender a gostar, a desistir, a recomeçar, a aquecer.
E seguir. Com menos pressa. Com mais escuta.
Com chá preto numa quinta-feira sem café.
E com coragem para continuar vivendo
todos os dias
nas entrelinhas.
Pra continuar escrevendo
Pense em um objeto ou um gesto simples que você faz hoje quase sem perceber, mas que traz uma marca de quem te ensinou a ser quem você é.
Pode ser a maneira como você arruma a cama, um prato que sempre aparece na sua mesa, um cheiro, o jeito de preparar o café, de dobrar uma roupa, um ritual pequeno que se repete.
Agora, escreva sobre esse objeto ou gesto. Pode ser uma memória, uma crônica, um texto poético, um relato — o que vier com mais verdade para você.
Tente ouvir o que esse pequeno detalhe revela sobre você, sobre sua história, sobre os encontros e os aprendizados que ficaram nas entrelinhas.
Por(entre)linhas dessa semana fica por aqui. Eu espero que você continue escrevendo, mesmo devagar, mesmo que entre uma xícara de chá e outra. Que encontre nas suas entrelinhas pequenas histórias esperando para nascer.
Bateu forte por aqui o "há pequenas coisas que a gente aprende no silêncio da observação e só percebe o valor muito depois, quando está lá, sozinha, tentando fazer a vida funcionar sem tropeçar nos vazios".
Guardei o convite de escrita no final para fazer ao longo dessa semana!
Ler você mexe com as papilas gustativas. Seja com café, chá preto ou até mesmo água.