#23 “Mas você é artista?” — a pergunta que escritores ainda precisam responder
Sobre a escrita como arte, os saltos que ela nos pede e um exercício para continuar criando.
Olá, pessoa que escreve.
Espero que tudo esteja bem por aí.
Hoje escrevo essa news no final de uma madrugada gelada, sentada no sofá da sala, com o computador no colo, uma xícara de café quase fria e dois gatos que me olham com olhos de vai, fala sobre isso de uma vez.
Entre o silêncio da escrita e o brilho do palco, há um território inteiro que merece ser iluminado. Vem comigo?
Quando pensamos em um artista, logo nos vêm à mente uma bailarina em cena, uma atriz sob os refletores, um cantor no palco, um pintor diante da tela. O gesto é visível, o corpo está presente, o espetáculo acontece diante dos olhos. É arte que se vê, que se ouve, que se consome com os sentidos.
E o escritor?
Infelizmente, quem escreve muitas vezes é visto como alguém à margem da ideia tradicional de arte. Sentado, silencioso, entre cadernos ou teclas, parece não performar. Parece não compor. Parece não criar. Mas será que isso o torna menos artista?
Escrever é criar mundos.
É desenhar com palavras, compor com frases, coreografar ideias.
A matéria do escritor é o idioma, e sua arte é feita de ritmo, forma, intenção e silêncio.
Mesmo assim, não é raro que o escritor tenha que explicar (ou justificar) sua escolha:
“Mas você não trabalha? Vive só disso?”
“Ah, que bonito, mas o que mais você faz?”
“Quantos livros você já vendeu?”
Há um certo apagamento do gesto artístico de quem escreve.
Talvez porque, ao contrário do palco, a literatura exija silêncio.
Talvez porque o impacto de um texto não seja imediato, e sim íntimo e lento.
Talvez porque para a escrita seja difícil encontrar platéia.
Mas o escritor é artista, mesmo que nem sempre a sociedade o reconheça assim, mesmo que precise lembrar disso para si mesmo, todos os dias.
O escritor trabalha com o invisível, lida com a dúvida, com o intervalo, com a linguagem em estado de busca. Escreve para tocar o outro sem ser palpável, para ser ouvido por alguém que ainda nem chegou.
Cada frase criada, cada história contada, cada texto que pulsa é arte também.
É gesto criador, é artesania e entrega, é resistência e poesia.
E talvez escrever, mais do que tudo, seja isso:
fazer arte com o que não se vê.
E você?
Se reconhece como artista quando escreve?
Já teve que explicar demais o que faz ou justificar por que escreve?
Me conta. Quero muito ouvir suas entrelinhas também.
Eu tinha um sonho e dei um salto no escuro
Sou uma pessoa sonhadora, meio distraída, que acredita em mundos possíveis. Pra piorar a minha situação de pessoa-utopia, ouvi no filme Bohemian Rhapsody a frase “A sorte favorece os ousados”. Ela ficou entalhada na minha cabeça por uns três anos, até que pedi uma licença não remunerada do trabalho, vendi minha casa, coloquei meus 2 filhos e meus 4 gatos no carro e mudei de cidade para aprender a escrever de verdade.
Eu tinha o sonho de ser escritora e ele precisava sair do papel.
Foi um salto no escuro, noites em claro, dúvidas, bloqueios criativos e mais do que persistência, estudo. Quando a insegurança financeira apertava, eu lembrava que a qualquer momento poderia encerrar a licença e voltar para o emprego seguro que havia deixado de lado. Mas não queria. E não, não aconselho ninguém a fazer isso. É uma escolha difícil, que exige coragem e também uma boa dose de loucura. Eu fiz, e deu certo porque a sorte favoreceu minha ousadia.
Apesar de todas as dificuldades, minha jornada de aprendizagem e criação tem me levado a momentos muito especiais.
Estou lançando meu quinto livro, que é meu primeiro livro ilustrado para infâncias: Lili Descobre a Beleza.
Esse livro fala sobre a despadronização do conceito de beleza, sobre aceitação, diversidade e o respeito às diferenças. Ele começa com padrões (aqueles que a sociedade impõe) e termina com um coração mais aberto, mais atento ao que realmente importa. Com ilustrações sensíveis e cheias de vida da talentosa Camila Souza dos Santos e revisão pedagógica cuidadosa da Jéssica Iancoski, Lili celebra o encantamento do olhar e a magia das pequenas descobertas.
Mesmo trabalhando em uma editora e tendo suporte técnico, escolhi fazer uma publicação independente. Preciso ser honesta: não é bolinho não. Publicar um livro por conta própria exige muita energia, atenção a detalhes, burocracia, divulgação, e uma fé constante no trabalho.
Se você quiser conhecer Lili Descobre a Beleza e ajudar a fortalecer a literatura independente, clique no link abaixo. Cada compra é um abraço e um incentivo para seguir criando.
Obrigada por fazer parte dessa caminhada comigo.
Pra continuar escrevendo
Um olhar de dentro da arte
A proposta de hoje é misturar linguagens — e mergulhar em outra obra de arte com o olhar de quem escreve.
Abaixo, você vai encontrar uma imagem de Las Meninas, de Diego Velázquez.
Observe com atenção. Percorra cada detalhe. Agora, escolha um elemento dentro da cena: pode ser uma personagem, um objeto, uma sombra, uma cor, até algo que quase ninguém repararia.
Depois, escreva um texto breve a partir do ponto de vista desse elemento.
O que ele vê? O que sente? Como interpreta o que está acontecendo naquela cena?
A ideia aqui é escrever de dentro da imagem, emprestando voz a algo (ou alguém) que está ali, mas que normalmente ficaria em silêncio.
Pode ser poético, pode ser divertido, pode ser melancólico. Não há regras. Apenas um convite: veja como artista, escreva como quem vive ali dentro.
Por (entre)linhas fica por aqui.
Espero que, de algum modo, essa edição tenha tocado em algo aí dentro — uma memória, uma coragem, uma vontade de seguir criando.
Que a arte continue sendo esse fio que nos atravessa, mesmo quando tudo parece silêncio.
E que você nunca se esqueça: escrever também é estar em cena.
Mabelly Venson é uma matemática que se apaixonou pela escrita. Edita livros na Toma Aí Um Poema e é autora dos livros "Tudo Que Queima", “apenas mãe”, “GELO”, “Ciência Poética” e “Lili Descobre a Beleza”. Sua escrita parte de assuntos que encontram e atravessam o corpo-mulher.
Ótimo artigo! Já aguçou aqui mais um poema.♥️
Há dois dias eu disse para uma pessoa que eu sou um artista, posto que escritor, poeta. E agora chega a mim essa reflexão tão pertinente, tão necessária! É preciso a mudança do olhar sobre nós, que escrevemos. E a sua escrita só reforça essa necessidade.